MANIFESTO
“Em defesa de direitos conquistados”
Não pensamos, no entanto, a democracia apenas como um regime de apuração da vontade da maioria ou como o regime da lei e da ordem para a garantia dos direitos individuais e das condições de seu exercício
por Coletivo em Defesa de Direitos Conquistados
Em um país de formação social oligárquica, autoritária e violenta – moldado por desigualdades e discriminações produzidas por sua dominação colonial absolutista, a escravidão e ditaduras perversas em períodos mais recentes --, é preciso defender firmemente as conquistas republicanas e democráticas, os significativos, ainda que limitados, avanços dos direitos civis, políticos e sociais. No Brasil, sabemos bem do valor do estado de direito, das garantias constitucionais e de um efetivo ‘governo das leis’, que dissolve os vínculos de dependência pessoal, protege os mais fracos e vulneráveis e constitui nossa liberdade e dignidade de cidadãos.
Não pensamos, no entanto, a democracia apenas como um regime de apuração da vontade da maioria ou como o regime da lei e da ordem para a garantia dos direitos individuais e das condições de seu exercício, tarefa conferida a políticos profissionais e a técnicos competentes selecionados para a direção do Estado. Pensamos a Democracia como uma ‘formação social’, pois queremos uma sociedade democrática: uma formação sociopolítica em que o conflito, considerado legítimo e necessário, busca mediações institucionais para exprimir-se (nem consenso, nem combate, mas trabalho dos e sobre os conflitos). Nessa sociedade, portanto, o direito de todos à palavra deve ser o primeiro a ser garantido. E, para tal, não nos basta a afirmação da liberdade de opinião e expressão – que é imprescindível; aspiramos pela construção de um espaço público vigoroso em que a oligopolização dos meios de comunicação não silencie as vozes discordantes ou obstaculize as controvérsias do exercício da cidadania.
A formação social democrática que prezamos enfrenta com determinação as desigualdades sociais e econômicas que comprometem a dignidade de amplos setores da população brasileira, acolhendo suas lutas pela efetivação de direitos já estabelecidos e pela instituição de novos direitos, bem como o reconhecimento social de novos sujeitos políticos. Ademais, estamos cientes de que tais direitos só se firmam e se ampliam pela ação das classes populares – frequentemente exasperadas – contra as cristalizações jurídico-políticas que sustentam privilégios, naturalizados pela classe dominante. Queremos as crianças pobres em boas escolas, e não exploradas no mercado de trabalho; queremos vida digna para os idosos, não obstante as alegações contábeis sobre os déficits da Previdência; queremos as populações indígenas e seus saberes tradicionais protegidos, apesar dos interesses do agronegócio e das grandes mineradoras; e outras tantas garantias.
Com a Constituição de 1988, gestada no bojo da resistência à ditadura militar e das reivindicações da sociedade organizada (sindicatos, movimentos sociais, novos partidos políticos), consideramos, talvez um tanto ingenuamente, o exercício de certos direitos civis e sociais, bem como a consolidação da democracia, como patamares conquistados. Hoje, no entanto, vemos muitos desses direitos ameaçados e assistimos a tentativas inaceitáveis de violação da regra democrática da periodicidade da renovação das funções de poder, em atropelamento às disposições republicanas -- em função de interesses políticos e econômicos ou de posições ideológicas, ou mesmo como meio de defesa para atos criminosos, associados a ambições inteiramente pessoais da parte de profissionais políticos. Certamente subestimamos também as forças conservadoras e retrógradas que se enraizaram na sociedade e ganharam amplo espaço no Congresso Nacional – especialmente na Câmara dos Deputados – graças ao financiamento de lobbies interessados no desmonte da constitucionalidade de 1988 e dos direitos conquistados. Empresas de armas, segurança privada, grupos agropecuários, industriais e financeiros, igrejas evangélicas fundamentalistas, para lembrar alguns dos conglomerados mais poderosos, ganharam enorme influência sobre o Congresso e, hoje, os vemos trabalhar, em causa própria, para o restabelecimento do financiamento empresarial das campanhas políticas, já declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Os projetos que compõem a pauta conservadora evidenciam um trabalho gradual e seguro de desmonte das conquistas dos direitos estabelecidos sob a égide da Constituição de 1988. Os alvos desta operação de retrocesso são amplos e diversos: visam aos direitos das crianças e adolescentes, na proposta que reduz a maioridade penal e naquela da redução da idade para o ingresso no mercado de trabalho; a flexibilização da definição de trabalho escravo; a revogação do Estatuto do Desarmamento; criam novos obstáculos para a demarcação de terras indígenas; modificam o Estatuto da Família, recusando o reconhecimento das relações homoafetivas; modificam a lei de atendimento às vítimas de violência sexual, dificultando o aborto; e, sobretudo, promovem a restrição e punição a manifestações políticas e sociais e violações de privacidade, encapsuladas na Lei Antiterrorismo.
Diante desta ofensiva contra nossa constitucionalidade e contra direitos arduamente conquistados, nós universitários entendemos ser necessário defender as exigências e regras da democracia e nos pronunciar sobre estes projetos de legislação, francamente regressivos, que se referem, muitos deles, a temas e áreas de investigação que têm sido aprofundados por nossas pesquisas. Esse desmonte de direitos agride diretamente nossas convicções e valores democráticos. Assim, entendemos dever romper o silêncio para, por meio de um debate público, contribuir para a sustentação e ampliação destes direitos e o aprofundamento de nossa convivência democrática.


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